Em 2010, às vésperas do dia das mães, o jornalista da rede Globo Alexandre Garcia, não se sabe se sob efeito de algum narcótico ou apenas inspirado em sua própria ignorância e arrogância, deu uma entrevista tresloucada para a rádio CBN que mais parecia um compêndio de sandices e misoginia.
Afirmou ser o parto humanizado uma "bobagem", condenou a presença do acompanhante no parto; associou o parto de cócoras a práticas indígenas; chamou de "uma maluquice" o fato do Ministério da Saúde incentivar a gravidez de mulheres portadores do vírus HIV, entre outros impropérios frutos de uma mente retrógrada e reacionária.
Em virtude desse destempero todo, a rede Parto do Princípio emitiu uma Carta Aberta em repúdio às declarações do jornalista, intitulada "Quem está brincando com a saúde?", ressaltando seu desconhecimento a respeito de políticas públicas, de legislação federal, evidenciando o teor discriminatório das declarações, ressaltando as evidências científicas que atestam os benefícios tanto da presença do acompanhante quanto das práticas humanizadas de parto e nascimento, e ressaltando a existência de protocolos de atendimento às mulheres soro-positivas que evitam a transmissão vertical do HIV, tornando possível o nascimento de bebês saudáveis. Além disso, a carta enfatiza que o direito à reprodução é um direito inalienável, quer o jornalista queira ou não, e finaliza com a indicação de um bom número de referências científicas onde podem ser buscados e encontrados todos os aspectos discutidos - ao contrário do que fez o desvairado da barba branca.
Então ontem chegou até mim um texto inacreditável do mesmo jornalista.
Inacreditável pelo teor de mentira, ignorância, tom discriminatório, pejorativo, ultrapassado, reacionário e absolutamente não procedente.
Que me leva a crer firmemente que:
o jornalista Alexandre Garcia sente-se absolutamente confortável em desprezar mulheres;
em desdenhar de práticas humanistas que visam assegurar a essas mulheres o direito de serem bem atendidas, não por serem cidadãs, mas por serem seres humanos;
não se dá ao menor trabalho de fazer qualquer tipo de pesquisa antes de emitir opinião - geralmente carregada em preconceito de gênero - a respeito de temas sobre os quais não faz a menor ideia do que sejam;
mostra como tornou-se ultrapassado, retrógrado e obsoleto, inclusive por não rever de nenhuma maneira sua posição reacionária, já manifestada dois anos antes e que gerou grandes protestos de ativistas dos movimentos sociais;
desconsidera totalmente o cenário atual da obstetrícia brasileira, fortemente marcado pela violência institucional que todos os dias faz novas vítimas;
mostra desconhecer por completo a Política Nacional de Humanização do Ministério da Saúde, que por humanização entende a valorização dos diferentes setores envolvidos no processo de produção de saúde (usuários, trabalhadores e gestores), e cujos valores norteadores são o respeito à autonomia e ao protagonismo dos sujeitos, a co-responsabilidade entre eles e o estabelecimento de vínculos solidários. E que usa como lema o conceito de que QUEREMOS UM SUS HUMANIZADO;
seu texto não se assemelha nem de longe à prática jornalística, estando mais próximo de uma opinião desprovida de qualquer embasamento teórico que foi dada às pressas por absoluta falta do que falar.
O texto de Alexandre Garcia começa mencionando uma suposta mulher de 40 anos, diabética, que perdeu um suposto bebê de 5 kg por ter sido convencida pelo que ele chama de "campanha do parto humanizado". Alexandre afirma que ela "quis ter o bebê em casa, de parto natural e quase morreu junto com feto". Complementa afirmando que "ela foi uma vítima de um surto de imbecilidade que assola o país". A chama de "sobrevivente de São Paulo" e acredita que ela "deveria processar essa gente irresponsável que propagandeia o tal 'parto humanizado'".
Alexandre deve ter se esquecido do furor que suas declarações de 2010 produziram nos ativistas dos movimentos sociais - estará esse esquecimento associado a um possível caso de demência? Acho possível.
O parto domiciliar que Alexandre menciona simplesmente não existiu - como foi informado por algumas pessoas que assistiram à matéria da sucursal paulista da rede Globo que noticiou o caso. E não existiu porque a moça em questão, uma moça bastante simples que realmente perdeu o filho, sequer cogitou o parto domiciliar. Ela foi atendida em uma unidade de saúde já em trabalho de parto, com dilatação em curso, e no momento do nascimento, que foi bastante complicado, houve uma lesão de coluna cervical e o bebê não resistiu. Realmente uma tragédia, cujo envolvimento nesta trama sórdida criada por ele só serviu para tornar ainda mais trágica.
E que nada tem a ver com a humanização do parto - de que parte da mente perturbada desse jornalista saiu isso?
E ele continua, dizendo que respondeu a ela que "isso só acontece com jornalista que acredita nas ondas de novidades desse tipo de retrocesso para o primitivismo".
Você se decida, ô Alexandre.
Você se decida aí se vai achar o parto humanizado uma ONDA DE NOVIDADE ou um RETORNO AO PRIMITIVISMO.
De qualquer forma, é importante dizer que antropologicamente falando, o primitivismo não é algo ruim, pelo contrário. Reflete uma crença em uma suposta superioridade do estilo de vida simples de sociedades anteriores à era industrial. Mas não. Alexandre Garcia não acha isso legal. Ele é moderno. Ele é da era João Baptista Figueiredo. Mas gosta de modernidade.
Alexandre afirma também que "outra coisa que gostamos de propagandear é o quanto os índios têm a nos ensinar". Afirma que "parece mentira que quem entra nessa onda não pára para pensar que nossa cultura evoluiu séculos, milênios, sobre culturas que ficaram na idade da pedra" e que alguns "querem que abandonemos a evolução para aderir a primitivismos".
Parece até mentira...
Alexandre: você quer mesmo falar em índios?
Quer mesmo falar sobre o que os índios têm a nos ensinar?
Quer mesmo falar sobre "o que os índios estão em busca"?
Vamos falar então.
Vamos falar sobre os índios como se deve, seu alienado reacionário metido a intelectual político bancado pela rede Globo.
Após atacar covarde e ignorantemente a humanização do parto, Alexandre Garcia direciona sua língua bipartida para os ambientalistas que lutam contra a construção de usinas hidrelétricas que levarão consigo grande quantidade de riqueza natural e humana, chamando-os de "grupos fanáticos" e tratando-os com arrogância e desprezo que antes dirigiu aos humanistas do parto.
O jornalista reacionário, que foi porta-voz do governo João Figueiredo por 1 ano e meio e que em início de carreira na Rede Globo fez-se tirando onda da cara de políticos, analisando as gafes cometidas e conquistando o apelidinho de "Alexandre Gracinha", termina o arremedo que chamo aqui de "texto"afirmando que "a praga do politicamente correto insiste em que somos todos iguais. Não somos". E afirma que somente perante um tribunal somos todos iguais e que na vida nos distinguimos por nossos "méritos e defeitos", e que "o resto é conversa mole de hipócritas".
Nesse ponto tenho que concordar com o jornalista: não, não somos iguais.
Enquanto alguns lutam pelo respeito à dignidade humana e à autonomia, enquanto outros suplicam pelo respeito à própria dignidade como seres humanos, enquanto outros são desrespeitados e violentados enquanto nascem seus filhos, vem um jornalista de imagem desgastada e ultrapassada desses pisotear a dor alheia.
Pelo menos em uma coisa Alexandre Garcia foi certeiro em seu texto, que leva como título "Hipocrisia do correto em tempo de idiotas"(e que eu confesso que dediquei algum tempo a verificar se realmente procedia, se era real, tamanho absurdo de seu conteúdo, tendo encontrado a publicação do mesmo em diferentes portais de notícias). Realmente estamos vivendo em um tempo de idiotas. E são esses idiotas que o "pessoal da humanização" busca combater.
O que deixa bastante claro sobre em qual dos grupos se insere esse jornalista.
Façamos todos o que o militar João Figueiredo, último presidente da era ditatorial brasileira, do qual Alexandre Garcia foi porta-voz, sugeriu ao próprio jornalista na célebre entrevista que concedeu para este quando ainda trabalhava na extinta TV Manchete:
Esqueçam Alexandre Garcia*.
E que possamos lembrar também da frase dita pelo mesmo militar em resposta aos estudantes de Florianópolis:
Sim, Alexandre Garcia, sua mãe está em pauta**
*em alusão à célebre frase de João Figueiredo em entrevista para Alexandre Garcia: "Eu quero que me esqueçam"
** João Figueiredo diz, em resposta a estudantes por ocasião de sua visita a Florianópolis: "Minha mãe não está em pauta"
Publicação extraída do blog Cientista que virou mãe.
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