Mais que humanizar, mamiferizar o parto.
Para o obstetra, Michel Odent, o parto é um ato extremamente particular e, nele, bastam a fêmea e uma parteira. Ele defende idéias revolucioárias e joga por terra conceitos hoje considerados ecologicamente corretos. Assim, Michel Odent se tornou referência para todos nós, militantes da causa do parto humanizado, que tentamos ver mais longe, no futuro, alterando o presente.
Conheci o obstetra Michel Odent através do Dr. João Batista Marinho, obstetra do Sofia Feldman, que é um entusiasmado defensor das idéias desse verdadeiro mestre e referência para todo o movimento pelas boas práticas no parto. Michel Odent é francês, mas reside em Londres, onde ainda assiste partos domiciliares.
Muitos de nós nem tínhamos nascido, quando Odent já clinicava. Ele começou assistindo partos em 1953, em maternidades, hospitais e domicílios. Ele se denomina parteiro.
Em 2008 – há exatos dois anos – tive o privilégio de participar da abertura do Seminário BH Pelo Parto Normal, na Associação Médica de Minas Gerais, e de vê-lo de perto. Um homem com mais de 70 anos, ainda esbelto, entusiasmado e bonito. Ele fez a palestra de abertura.
Alguém da platéia perguntou a sua opinião sobre a Lei do Acompanhante do Brasil, que permite acompanhante de parto para mulher.. Ele, com um sorriso, disse: “ ainda bem que é só uma pessoa “. Então, contou que ainda assiste partos em Londres, com uma parteira. Em um parto que não evoluía, a parteira o chamou e disse:” Dr, por favor, faça a sua parte”. Ele então chamou o marido para fora do quarto, o levou para a cozinha, onde ficaram tomando chá. Incrível, Michel Odent declarou para uma auditório lotado, composto por representantes das classes médicas e maternidades, que – fazer a parte do médico é ir para um lugar à parte, acalmar o marido e deixar as coisas com as mulheres. Cumprindo a etimologia do nome Obstetra, palavra que deriva de obstar – estar ao lado.
Retirei alguns trechos fundamentais desta palestra – que foi publicada no livro do Seminário BH Pelo Parto Normal, editado pela Secretaria Municipal de Saúde de Belo Horizonte – para dividir com vocês. Já vou avisando, ele quebra conceitos, tira todos do cenário do parto – inclusive o marido – para deixar apenas a mulher e a parteira.
O PARTO PEDE PRIVACIDADE
“Se você prejudica o processo de nascimento de um mamífero não-humano, o efeito é que a mãe não cuida do recém-nascido. Por exemplo, no caso das ovelhas, se você interrompe o parto, a mãe simplesmente não vai aceitar o bebê. No ser humano é mais complexo, tudo é diluído pelo meio cultural.”
“A ocitocina é o hormônio-chave no processo de nascimento, mas a ocitocina é especial quando consideramos a condição para sua liberação, porque depende de fatores ambientais para sua liberação. A ocitocina é um hormônio tímido. Podemos comparar a ocitocina com uma pessoa tímida que não aceita se mostrar para estranhos e observadores… Nós até entendemos o papel do ambiente na liberação da ocitocina em outras situações que não o parto, como na relação sexual e que você não tem como fazer amor em qualquer ambiente.”
“Todos os mamíferos têm uma estratégia de não serem observados no momento do parto. E quanto aos partos em seres humanos? Parece que houve uma fase na história da humanidade em que as mulheres se separavam do grupo e iam para o mato na hora do parto, comportando-se como os outros mamíferos, como se soubessem que a ocitocina é um hormônio tímido. Parece, entretanto, que em todas as sociedades em que as mulheres se separavam do grupo para dar à luz, elas não ficavam muito longe de suas mães ou de uma mulher com experiência que as protegiam contra a presença de animais ou de algum homem. Essa, provavelmente, é a origem da parteira. Nós não temos timidez com relação à nossa mãe e o hormônio aceita aparecer na sua presença. É importante perceber que a parteira é sempre, ou normalmente, uma figura materna.
SOCIALIZAÇÃO DO PARTO
Segundo Odent, depois dessas épocas primitivas, ocorreu uma socialização maior do parto e chegou a parteira ao cenário do parto, uma agente do meio cultural, que transmitia crenças e rituais, “funcionando como uma guia e dizendo à mulher o que precisava ser feito”. Depois, as mulheres passaram a ter partos domiciliares. “Em meados do século XX surgiu algo novo: teorias consideradas científicas –mas que representaram um passo para amplificar a nossa falta de compreensão da ocitocina como um hormônio tímido – e que direta ou indiretamente, influenciaram a maior parte das escolas de parto natural, como a teoria dos reflexos condicionados e psico-profilaxia. …Desta forma, as mulheres precisam ser recondicionadas e ensinadas como dar à luz, como respirar, como apertar, o que levou à introdução de pessoas adicionais à cena do nascimento.Tais teorias abriram espaço para a idéia de que, durante o parto, a mulher precisa de um guia, de alguém que lhe diga como respirar ou como fazer força.”
MASCULINIZAÇÃO DO PARTO
“Mas houve um novo passo na metade do século XX, que foi a masculinização da cena do parto. Além de cada vez mais médicos se especializarem em obstetrícia, subitamente, na década de70, havia uma nova doutrina do pai participando no processo de parto. Também foi o momento em que as máquinas eletrônicas e a alta tecncologia foram introduzidas na cena do parto. Ou seja, o ambiente do nascimento se tornou altamente masculino, o que foi um outro passo nesse processo de socialização do parto.
EPIDEMIA DE VÍDEOS
Recentemente, há ainda uma nova fase: a epidemia de vídeo. … ficou comum filmar o nascimento. Segundo ele, observando os partos se vê uma mulher dando à luz cercada por três ou quatro pessoas. “E isso tem sido chamado de parto natural porque a mulher está na banheira ou está de cócoras ou está de quatro, mas o ambiente é tão não natural quanto possível. Quem olha, acha que parto natural significa parto domiciliar ou na banheira e deixam de perceber o que era importante: a ocitocina é um hormônio tímido. Isto é algo que precisamos redescobrir em todas as fases do parto, mas, particularmente,na fase logo após o nascimento do bebê.
UM PICO DE OCITOCINA
Este é o momento em que a mãe tem a capacidade de liberar os níveis mais altos de ocitocina, mais do que durante o parto, mais do que durante o orgasmo…Esse pico de ocitocina é necessário para que haja um pós-parto sem sangramento. Além disso, por ser a ocitocina o hormônio do amor é importante saber que o maior pico de sua liberação ocorre imediatamente após o nascimento do bebê. Uma vez que a ocitocina é um hormônio tímido, é preciso pensar:o que torna possível esse pico de ocitocina? Hoje, esse pico é praticamente impossível de acontecer porque a condição para ele ocorrer é o contato pele-a-pele com o bebê, que a mãe pudesse olhar nos seus olhos, sentir o seu cheiro, sem qualquer distração. Mas os cientistas tornaram isso impossível com as crenças e práticas de separar o bebê da mãe após o parto .Isto é prejudicial. Da mesma forma, o colostro, que o bebe busca quase imediatamente após o parto, mas que para achá-lo precisa estar nos braços da mãe.
ADRENALINA x OCITOCINA
O segundo ponto a ser lembrado é bastante simples quando consideramos as necessidades da mulher em trabalho de parto. Quando nós, os mamíferos, liberamos adrenalina, não conseguimos liberar ocitocina. A adrenalina é o hormônio da emergência e os mamíferos a liberam em certas situações: quando estão assustados, com frio ou com medo. Ou seja, no parto a mulher precisa se sentir segura, sem se sentir observada; há o antagonismo adrenalina-ocitocina…
PLANETA PARTO
O terceiro ponto necessário para redescobrir as necessidades básicas de mulheres em trabalho de parto é aquele que faz os seres humanos especiais Os seres humanos têm mais propensão para partos difíceis, em comparação com outros mamíferos e outros primatas. Uma das razões da dificuldade humana no período do trabalho de parto advém do nosso grande neo-córtex. Mas, por que o grande neo-córtex é uma deficiência durante o processo de parto? Porque durante o processo de parto ou de uma experiência sexual, as inibições vêm do neo-córtex.
Se olharmos uma mulher em trabalho de parto do ponto de vista fisiológico, nós vamos ver que a parte primitiva do cérebro, uma estrutura arcaica chamada hipotálamo é a mais ativa durante o trabalho de parto. O fluxo de hormônios que a mulher tem que liberar para o trabalho de parto vem dessa parte profunda e primitiva do cérebro. Ao mesmo tempo, vamos conseguir visualizar as inibições vindas do neo-córtex. Mas a natureza achou uma solução para superar essa deficiência: durante o parto, neo-córtex deve parar de funcionar. O nascimento é um processo primitivo e durante esse processo o neo-córtex deve estar desligado. Quando a mulher está em trabalho de parto sozinha, ela se desconecta do nosso mundo e esquece o que está acontecendo à sua volta. Seu comportamento pode, inclusive, ser considerado inaceitável para uma mulher “civilizada”: ela grita, xinga, é pouco polida, assume diferentes posições. Ela fica em outro planeta. Isso significa que o neo-córtex reduziu sua atividade, o que é essencial na fisiologia do parto. Uma mulher em trabalho de parto precisa, em primeiro lugar, de ser protegida contra qualquer estímulo do neo-córtex. Na prática isso significa que temos que lembrar quais são os estimulantes do neo-córtex para evitá-los. Um destes estimulantes é a linguagem, que é processada no neo-córtex. Se utilizarmos a perspectiva fisiológica, vamos reconhecer que é preciso cautela para usar a linguagem durante o trabalho de parto e vamos redescobrir o silêncio. Vamos demorar muito a aceitar o silêncio na sala de parto, depois de séculos de socialização. Recentemente, assistindo a um desses vídeos de parto natural, assim chamado porque era domiciliar e a mulher estava de quatro, pudemos observar que a parteira não parava de falar. Precisamos redescobrir que a linguagem estimula o neo-córtex e interfere na liberação da ocitocina e a importância da privacidade.
O neo-córtex também é estimulado pela luz, é muito sensível ao estímulo visual em geral. É interessante observar como uma mulher em trabalho de parto que não é guiada, observada e não é orientada por nenhum plano pré-concebido, geralmente encontra por conta própria uma posição tal, na qual ela elimina os estímulos visuais. Ela se acocora, e inclina para a frente, deixa os cabelos caírem sobre o rosto e assim não enxerga nada e pode esquecer o resto do mundo.
O quarto ponto para podermos redescobrir e atender às necessidades da mulher em trabalho de parto e do recém-nascido é seguir uma regra simples: aprender a eliminar, no período perinatal, tudo que é especificamente humano. O que isso significa? Que devemos eliminar todas as crenças e rituais que interferem com o processo de nascimento, como alguns que eu mencionei.
Odent quebra conceitos e preconceitos:
“No movimento do parto natural, uma nova teoria surgiu há um tempo atrás, uma idéia de que seria possível, imediatamente após o parto, induzir uma ligação entre o pai e o recém-nascido. Isso é irrealista. A razão pela qual este é um período crítico para a mãe e o bebê está no equilíbrio hormonal especial que nunca mais vai acontecer. E esse período crítico não pode ser o mesmo para o pai. O efeito foi de introduzir outra pessoa que distrai a mãe, no momento exato que ela deve liberar um alto pico de ocitocina…
Eliminar o que é especificamente humano significa que durante o processo do nascimento o neo-córtex deve parar de funcionar. Ao mesmo tempo, temos que redescobrir, atender e satisfazer as necessidades universais que todos os mamíferos em trabalho de parto têm , que é se sentir seguro –se existe um predador em volta, a fêmea libera adrenalina para ter energia para lutar ou fugir e vai adiar o parto até se sentir segura – e ter privacidade – todas as fêmeas de mamíferos têm estratégias para não se sentirem observadas quando dão à luz. Essas são as regras simples que devemos seguir:
NA CESÁREA, SEM HORMÔNIOS
No contexto científico atual pode-se dizer que a mulher foi programada para liberar um coquetel de hormônios do amor quando está em trabalho de parto. Mas hoje, a maioria das mulheres tem seus bebês sem depender da liberação desse coquetel de hormônios, muitas por fazerem cesárea e, entre as que dão à luz por parto vaginal, por não poderem facilmente liberar os hormônios em ambientes inapropriados. E como não conseguem liberar facilmente os hormônios naturais, precisam de medicamentos que os substituem: precisam de ocitocina sintética no soro, precisam da analgesia peridural para substituir as endorfinas, precisam de medicamentos para eliminar a placenta. Tudo isso bloqueia a liberação dos hormônios naturais.
Estamos em um momento hoje em que o número de mulheres que dão à luz e que eliminam os hormônios naturais do amor está tendendo a zero. Isso é uma situação sem precedentes. Os seres humanos são tão inteligentes e tão espertos, devido aos seus neo-córtex, que conseguiram tornar os hormônios do amor em hormônios inúteis. Precisamos levantar questões sobre isso em termos da nossa civilização, não agora, não para esse bebê ou essa mulher, mas o que vai acontecer daqui a três ou quatro gerações se continuarmos nessa direção? Se fizermos a pergunta dessa forma e percebendo que precisamos redescobrir as necessidades básicas da mulher em trabalho de parto e do bebê recém-nascido e atender às regras básicas e simples, podemos dizer que
A PRIORIDADE HOJE NÃO É HUMANIZAR O PARTO. A PRIORIDADE HOJE É MAMIFERIZAR O PARTO.
Fonte: Jornal Bem Nascer
Nenhum comentário:
Postar um comentário